02 fevereiro 2007

O caldo de pedra

Roberto Moraes Pessanha
Professor do Cefet Campos
e-mail: moraes@fmanha.com.br

Um frade andava no peditório; chegou à porta um lavrador, mas não lhe quiseram aí dar nada. O frade estava a cair com fome, e disse:
- Vou ver se faço um caldinho de pedra.
E pegou numa pedra do chão, sacudiu-lhe a terá e pôs-se a olhar para ela para ver se era boa para fazer um caldo. A gente da casa pôs-se a rir do frade e daquela lembrança. Diz o frade:
- Então nunca comeram caldo de pedra? Só lhes digo que é uma coisa muito boa.
Responderam-lhe:
- Sempre queremos ver isso.
Foi o que o frade quis ouvir. Depois de ter lavado a pedra, disse:
- Se me emprestarem aí um pouquinho.
Deram-lhe uma panela de barro. Ele encheu-a de água e deitou-lhe a pedra dentro:
- Agora se me deixassem estar a panelinha aí ao pé das brasas.
Deixaram. Assim que a panela começou a chiar, disse ele:
- Com um bocadinho de unto. Ferveu, ferveu, e a gente da casa pasmada para o que via. Diz o frade, provando o caldo:
- Está um bocadinho insosso; bem precisa de uma pedrinha de sal.
Também lhe deram o sal. Temperou, provou, e disse:
- Agora é que com uns olhinhos de couve ficava que os anjos o comeriam.
A dona da casa foi à horta e trouxe-lhe duas couves tenras. O frade limpou-as e ripou-as com os dedos, deitando as folhas na panela.
Quando os olhos já estavam aferventados, disse o frade:
- Aí, um naquinho de chouriço é que lhe dava uma graça...
Trouxeram-lhe um pedaço de chouriço; ele botou-o à panela, e enquanto se cozia tirou do alforje pão e arranjou-se para comer com vagar. O caldo cheirava que ra um regado. Comeu e lambeu o beiço; depois de despejada a panela, ficou com a pedra no fundo; a gente da casa, que estava com olhos nele, perguntou-lhe:
- Ó senhor frade, então a pedra?
Respondeu o frade:
- A pedra lavo-a e levo-a comigo outra vez.
E assim comeu onde não lhe queriam dar nada.

O texto acima é um conto popular português e faz parte do interessante livro editado pela Ediouro: “Os Grandes Contos Populares do Mundo” organizado pelo escritor Flávio Moreira da Costa.

Apesar de poder parecer contraditório, julgo-o apropriado, para aqueles que vivem na abastança, onde comida e royalties não faltam. Dizem que é na fartura que se deve pensar na carência. Vivemos um período momentâneo de dificuldades.

Há pessoas que há quase um mês estão fora de suas singelas moradias, enquanto há outras, que choram pela produção devorada pela força das águas. Meu parceiro Nelson Bagueira que mantém distância relativa das coisas religiosas, não aceita a idéia de um Deus castigador que os igrejeiros tanto gostam de anunciar. Tendo a ficar com a sua visão. Talvez sejamos nós mesmos aqueles, que ainda farão muitos a apreciarem o caldo de pedra. Pense nisto, cate sua pedra e que Deus no livre e guarde!

Publicado na Folha da Manhã em 2 de Fevereiro de 2007.